A prática docente com os bebês
Angela Scalabrin Coutinho
A docência com crianças pequenas envolve um universo rico e complexo de relações sociais e processos de constituição humana, que exige muito conhecimento por parte das professoras e organização do trabalho pedagógico
Estar com os bebês é uma experiência que nos desafia a cada dia. Esses seres humanos com pouca idade já foram identificados como um tubo digestivo (Neyrand, 2005). Na década de 1980, o francês Bernard Martino afirmou: “O bebê é uma pessoa!”. Embora essa frase possa sugerir uma obviedade, ela dá visibilidade a uma ideia recente de bebê: um sujeito racional, que tem sentimentos, que demonstra preferências, que se comunica. Essa novidade, que é a competência dos bebês, justifica o fato de as perspectivas que valorizam a infância e que reconhecem as crianças como informantes importantes sobre as questões que lhe dizem respeito terem avançado pouco na escuta e na consideração do ponto de vista dos bebês, já que eles põem em suspensão as nossas formas convencionais de comunicação e de relação com o outro.
O desafio de estar com os bebês passa principalmente pela comunicação, pois interpretá-los exige disponibilidade, conhecimento e interesse por parte dos adultos. Os bebês não comunicam pela fala ou pela escrita o que sentem, conhecem e desejam, mas sim por variados meios de comunicação, como o corpo, o choro, o olhar. Essa dimensão é bastante importante para a constituição da docência para a educação infantil, tendo em vista que, se já superamos a concepção do bebê como um tubo digestivo, não podemos compactuar com a defesa e a proposição de atuação profissional com crianças de 0 a 3 anos em instituições de educação infantil por profissionais sem formação específica para tais particularidades.
Estar professora de bebês exige conhecimentos de base que nem sempre os cursos de formação inicial têm contemplado, visto que não se trata de uma postura docente que centraliza no sujeito adulto ações que desencadeiam o processo de desenvolvimento das crianças, mas de uma docência baseada na relação: estar com os bebês significa colocar-se intencionalmente disponível para a relação. Nesse sentido, o papel do adulto profissional é central, já que é ele quem, na relação pedagógica com as crianças, cria condições para que estabeleçam relações entre elas, com os profissionais, com os objetos e demais elementos circundantes.
Reconhecer os bebês como competentes requer do adulto uma postura atenta quanto àquilo que eles já são capazes de fazer e significar para lhes provocar a avançar nesses processos, ou seja, os profissionais devem organizar o tempo e o espaço assegurando que os bebês tenham condições de ação, porém sempre os provocando a tornar essas ações mais complexas.
Um exemplo dessa atitude necessária ao adulto pode ser observado em algumas experiências educativas. Em 2009, realizei um estágio no âmbito do meu doutorado em três instituições de 0 a 3 anos da rede pública municipal de Florença, na Itália. Ao observar as práticas pedagógicas com os bebês, eu me deparava cotidianamente com a disposição de uma bela mesa para a refeição: com toalha, pratos de louça, talheres, travessas com os alimentos e uma pequena jarra com água. Essa jarra comportava apenas dois copos de água, o que exigia que as professoras repusessem a água muitas vezes durante a refeição. Mas, então, por que elas utilizavam esse utensílio?
A explicação é simples: os bebês tinham competência para suportar apenas aquele peso e, com uma jarra maior, não teriam condições de se servir sozinhos. Desse modo, interessadas em que eles se sentissem capazes de servir e aprendessem a manusear essa ferramenta culturalmente utilizada nas refeições, as professoras davam-lhes condições de ação. Eles eram capazes de se servir e, com o passar do tempo, manuseavam com destreza o objeto, o que lhes proporcionava uma imagem positiva de si, observada claramente em suas feições nos momentos em que se serviam.
Ainda que esse exemplo pareça bastante simples, permite identificar elementos que constituem a docência com os bebês: as concepções basilares à nossa ação devem ser convocadas sempre que planejamos as proposições; a observação e a escuta do profissional são fundamentais à organização do trabalho pedagógico; as relações sociais estão no centro das aprendizagens; as situações com maior foco no cuidado também constituem o trabalho pedagógico e devem ser consideradas nos planejamentos.
No âmbito das concepções, a ampliação da interlocução da educação com outras áreas do conhecimento, como a sociologia da infância, ajuda-nos a compreender a criança como ator social de direitos e a infância como sendo heterogênea e estando marcada por questões de gênero, etnia, cultura, classe social, as quais interferem nas experiências e nos repertórios das crianças desde que nascem. Na contemporaneidade, é sobretudo na instituição de educação infantil que se encontra tal heterogeneidade. Nesse sentido, devemos problematizar como as instituições de educação infantil lidam com essa heterogeneidade se elas próprias são marcadas por práticas homogêneas. Conseguimos tomar essa diversidade como elemento enriquecedor (e não como dificultador) das relações pedagógicas? Como esses fatores de heterogeneidade são compreendidos quando se trata das crianças menores de 3 anos?
Tais perguntas são necessárias para que superemos jargões que, na prática, não se efetivam, pois lemos nos projetos político-pedagógicos das instituições que as infâncias são heterogêneas, mas ainda nos deparamos com práticas que tentam homogeneizar as ações — por exemplo, propõem que 15 bebês sentem-se ao redor de uma mesa, pintem ao mesmo tempo e aqueles que terminam antes esperem sentados pelos demais. Qual o sentido dessa ação? É uma prática que considera a heterogeneidade?
Nessa perspectiva, precisamos partir do princípio de que essas concepções basilares são fundamentais à organização da prática pedagógica, porém a sua efetivação passa pelo conhecimento das singularidades das crianças, dos seus contextos de vida, das relações que estabelecem na família e da comunidade onde se situa a instituição. Embora o encontro entre essas diferentes dimensões nem sempre seja consonante, é justamente aí que reside a riqueza do processo. Temos de problematizar as concepções, ler a nossa realidade com um olhar crítico, que nos permita, por exemplo, questionar que a concepção da criança como ator social exige que as professoras tenham tempo para observar e conhecer quem é essa criança, debruçar-se sobre os registros que produzem, planejar a sua ação de modo intencional, organizar o tempo, o espaço e os materiais, bem como propor encontros com as famílias.
A intencionalidade necessária à ação docente tem traços próprios quando se trata da educação das crianças pequenas e exige uma redefinição do que seja a docência, porque não permite a adaptação do modelo de professora do ensino fundamental; trata-se de uma docência de outra ordem. As estratégias de organização do trabalho pedagógico são comuns, pois há de se planejar, observar, registrar e avaliar. No entanto, os conteúdos da ação pedagógica diferenciam-se e lembram-nos por que a educação infantil é a única etapa da educação básica que não é caracterizada pelo termo “ensino”, como acontece com o ensino fundamental e médio. As relações educativo-pedagógicas com as crianças pequenas são bastante amplas, abrangendo um processo de inserção em várias situações da vida social. Para os bebês, muitas situações estão ocorrendo pela primeira vez na vida, e o modo como essas situações são mediadas faz toda a diferença em sua constituição humana e em sua educação.
A abrangência das relações educativas traz, a meu ver, uma dupla possibilidade: a primeira delas refere-se à complexidade dos processos educativos, permitindo que, entre todas as possibilidades de experiências a serem vividas, cada grupo de crianças tenha suas marcas, seu percurso, sua história, traçados pelos indicativos dos bebês e pelas escolhas das professoras. A segunda possibilidade situa-se na mecanização e reprodução das ações, já que, como se trata de planejar e mediar situações que nem sempre têm um produto palpável, dada a subjetividade das relações humanas e o tempo para que se consolidem, e como é muito difícil para as professoras planejar as relações e não propriamente atividades a partir das quais haja um produto materializado, por vezes a prática pedagógica com os bebês é realizada seguindo repetitivamente a rotina já prevista.
Reside aí um dos paradoxos da docência com as crianças pequenas: um universo rico e complexo de relações sociais e processos de constituição humana, que exige muito conhecimento por parte das professoras e organização do trabalho pedagógico, ao mesmo tempo em que pode ser organizado com base unicamente na resposta às necessidades básicas das crianças, sem muito planejamento e intencionalidade. Nesse amplo universo de ação, indico a importância de consolidarmos nos espaços de formação os seguintes aspectos:
O desafio de estar com os bebês passa principalmente pela comunicação, pois interpretá-los exige disponibilidade, conhecimento e interesse por parte dos adultos. Os bebês não comunicam pela fala ou pela escrita o que sentem, conhecem e desejam, mas sim por variados meios de comunicação, como o corpo, o choro, o olhar. Essa dimensão é bastante importante para a constituição da docência para a educação infantil, tendo em vista que, se já superamos a concepção do bebê como um tubo digestivo, não podemos compactuar com a defesa e a proposição de atuação profissional com crianças de 0 a 3 anos em instituições de educação infantil por profissionais sem formação específica para tais particularidades.
Estar professora de bebês exige conhecimentos de base que nem sempre os cursos de formação inicial têm contemplado, visto que não se trata de uma postura docente que centraliza no sujeito adulto ações que desencadeiam o processo de desenvolvimento das crianças, mas de uma docência baseada na relação: estar com os bebês significa colocar-se intencionalmente disponível para a relação. Nesse sentido, o papel do adulto profissional é central, já que é ele quem, na relação pedagógica com as crianças, cria condições para que estabeleçam relações entre elas, com os profissionais, com os objetos e demais elementos circundantes.
Reconhecer os bebês como competentes requer do adulto uma postura atenta quanto àquilo que eles já são capazes de fazer e significar para lhes provocar a avançar nesses processos, ou seja, os profissionais devem organizar o tempo e o espaço assegurando que os bebês tenham condições de ação, porém sempre os provocando a tornar essas ações mais complexas.
Um exemplo dessa atitude necessária ao adulto pode ser observado em algumas experiências educativas. Em 2009, realizei um estágio no âmbito do meu doutorado em três instituições de 0 a 3 anos da rede pública municipal de Florença, na Itália. Ao observar as práticas pedagógicas com os bebês, eu me deparava cotidianamente com a disposição de uma bela mesa para a refeição: com toalha, pratos de louça, talheres, travessas com os alimentos e uma pequena jarra com água. Essa jarra comportava apenas dois copos de água, o que exigia que as professoras repusessem a água muitas vezes durante a refeição. Mas, então, por que elas utilizavam esse utensílio?
A explicação é simples: os bebês tinham competência para suportar apenas aquele peso e, com uma jarra maior, não teriam condições de se servir sozinhos. Desse modo, interessadas em que eles se sentissem capazes de servir e aprendessem a manusear essa ferramenta culturalmente utilizada nas refeições, as professoras davam-lhes condições de ação. Eles eram capazes de se servir e, com o passar do tempo, manuseavam com destreza o objeto, o que lhes proporcionava uma imagem positiva de si, observada claramente em suas feições nos momentos em que se serviam.
Ainda que esse exemplo pareça bastante simples, permite identificar elementos que constituem a docência com os bebês: as concepções basilares à nossa ação devem ser convocadas sempre que planejamos as proposições; a observação e a escuta do profissional são fundamentais à organização do trabalho pedagógico; as relações sociais estão no centro das aprendizagens; as situações com maior foco no cuidado também constituem o trabalho pedagógico e devem ser consideradas nos planejamentos.
No âmbito das concepções, a ampliação da interlocução da educação com outras áreas do conhecimento, como a sociologia da infância, ajuda-nos a compreender a criança como ator social de direitos e a infância como sendo heterogênea e estando marcada por questões de gênero, etnia, cultura, classe social, as quais interferem nas experiências e nos repertórios das crianças desde que nascem. Na contemporaneidade, é sobretudo na instituição de educação infantil que se encontra tal heterogeneidade. Nesse sentido, devemos problematizar como as instituições de educação infantil lidam com essa heterogeneidade se elas próprias são marcadas por práticas homogêneas. Conseguimos tomar essa diversidade como elemento enriquecedor (e não como dificultador) das relações pedagógicas? Como esses fatores de heterogeneidade são compreendidos quando se trata das crianças menores de 3 anos?
Tais perguntas são necessárias para que superemos jargões que, na prática, não se efetivam, pois lemos nos projetos político-pedagógicos das instituições que as infâncias são heterogêneas, mas ainda nos deparamos com práticas que tentam homogeneizar as ações — por exemplo, propõem que 15 bebês sentem-se ao redor de uma mesa, pintem ao mesmo tempo e aqueles que terminam antes esperem sentados pelos demais. Qual o sentido dessa ação? É uma prática que considera a heterogeneidade?
Nessa perspectiva, precisamos partir do princípio de que essas concepções basilares são fundamentais à organização da prática pedagógica, porém a sua efetivação passa pelo conhecimento das singularidades das crianças, dos seus contextos de vida, das relações que estabelecem na família e da comunidade onde se situa a instituição. Embora o encontro entre essas diferentes dimensões nem sempre seja consonante, é justamente aí que reside a riqueza do processo. Temos de problematizar as concepções, ler a nossa realidade com um olhar crítico, que nos permita, por exemplo, questionar que a concepção da criança como ator social exige que as professoras tenham tempo para observar e conhecer quem é essa criança, debruçar-se sobre os registros que produzem, planejar a sua ação de modo intencional, organizar o tempo, o espaço e os materiais, bem como propor encontros com as famílias.
A intencionalidade necessária à ação docente tem traços próprios quando se trata da educação das crianças pequenas e exige uma redefinição do que seja a docência, porque não permite a adaptação do modelo de professora do ensino fundamental; trata-se de uma docência de outra ordem. As estratégias de organização do trabalho pedagógico são comuns, pois há de se planejar, observar, registrar e avaliar. No entanto, os conteúdos da ação pedagógica diferenciam-se e lembram-nos por que a educação infantil é a única etapa da educação básica que não é caracterizada pelo termo “ensino”, como acontece com o ensino fundamental e médio. As relações educativo-pedagógicas com as crianças pequenas são bastante amplas, abrangendo um processo de inserção em várias situações da vida social. Para os bebês, muitas situações estão ocorrendo pela primeira vez na vida, e o modo como essas situações são mediadas faz toda a diferença em sua constituição humana e em sua educação.
A abrangência das relações educativas traz, a meu ver, uma dupla possibilidade: a primeira delas refere-se à complexidade dos processos educativos, permitindo que, entre todas as possibilidades de experiências a serem vividas, cada grupo de crianças tenha suas marcas, seu percurso, sua história, traçados pelos indicativos dos bebês e pelas escolhas das professoras. A segunda possibilidade situa-se na mecanização e reprodução das ações, já que, como se trata de planejar e mediar situações que nem sempre têm um produto palpável, dada a subjetividade das relações humanas e o tempo para que se consolidem, e como é muito difícil para as professoras planejar as relações e não propriamente atividades a partir das quais haja um produto materializado, por vezes a prática pedagógica com os bebês é realizada seguindo repetitivamente a rotina já prevista.
Reside aí um dos paradoxos da docência com as crianças pequenas: um universo rico e complexo de relações sociais e processos de constituição humana, que exige muito conhecimento por parte das professoras e organização do trabalho pedagógico, ao mesmo tempo em que pode ser organizado com base unicamente na resposta às necessidades básicas das crianças, sem muito planejamento e intencionalidade. Nesse amplo universo de ação, indico a importância de consolidarmos nos espaços de formação os seguintes aspectos:
- o conhecimento sobre a importância da atenção ao bebê, seja pela fala branda que o acolhe e revela o respeito do adulto para com ele, seja pelos olhares e gestos que lhe revelam que o adulto está atento às suas ações, aos seus movimentos;
- o conhecimento sobre a importância de espaços e tempos que promovam as interações e qualifiquem as relações entre as crianças, delas com os adultos, com os objetos e demais elementos do espaço físico e social;
- o reconhecimento do corpo como linguagem, assim como componente da ação social, já que ele tanto comunica e expressa quanto estrutura e se modifica, mediante as ações e relações sociais dos bebês (Coutinho, 2010).
Importa ainda reconhecer que o cuidado é um traço marcante da profissionalidade docente na educação infantil, não por ser exclusivo das relações educativas com as crianças pequenas, mas por ser a atenção uma prerrogativa da educação em espaços coletivos. Mesmo que as crianças bem pequenas tenham certa dependência em relação aos adultos e, portanto, em muitas situações o seu bem-estar dependa diretamente deles, há uma secundarização do cuidado, como se fosse atribuída à docência uma característica não profissional.
Embora esse discurso já tenha sido bastante repetido, deve-se estar atento para que a evocação da intencionalidade pedagógica não seja novamente interpretada como reprodução de um modelo de docência que não responde à realidade da educação infantil. Ser professora de crianças pequenas envolve trocá-las, alimentá-las, acalentá-las, brincar com elas, contar histórias, cantar, enfim, ocupar-se do seu desenvolvimento integral.
Reitero que a prática pedagógica deve ser sempre o encontro entre os fundamentos, as orientações legais e as realidades dos contextos educativos, tendo como centro a criança. A tradução de todos esses aspectos no processo educativo é que constitui o corpus da docência, uma profissão complexa e insubstituível.
- Angela Scalabrin Coutinho é professora do curso de Pedagogia da UFPR, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil (NEPIE/UFPR) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Educação da Pequena Infância (NUPEIN/UFSC). angelamscoutinho@gmail.com
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REFERÊNCIAS
- COUTINHO, A.S. A ação social dos bebês: um estudo etnográfico no contexto da creche. Tese — Doutorado em Estudos da Criança, Área Sociologia da Infância. Braga: Universidade do Minho, 2010.
NEYRAND, G. Une historie de l’enfance et de l’enfant du XVIII siècle à nos jours. In: PALÁCIOS, M. Enfants, sexe innocent? Soupçons et tabous. Paris: Éditions Autrement, 2005. p. 8-20.
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